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quarta-feira, 22 de julho de 2009

Entrevista com Luiz Villaça, Diretor do filme O Contador de histórias

20/7/2009 - Entrevista com Luiz Villaça, diretor de

Como surgiu O Contador de Histórias? Da forma mais doméstica possível. Em janeiro de 2002, coloquei meu filho Nino, então com três anos, para dormir e comecei a ler um livro que ele ganhara de Natal: O Contador de Histórias, de Roberto Carlos Ramos. Era um livro de histórias e na última página encontrei um resumo da vida do autor, de quem nunca tinha ouvido falar. Fiquei completamente tomado. No dia seguinte falei com a Denise, consegui o telefone do Roberto Carlos com a editora e liguei para ele. Quando falei da ideia de fazer um filme, ouvi: “Não estou acreditando. Acabei de chegar de um congresso de contadores de história nos Estados Unidos e alguém da platéia me falou, ‘esta história tem que virar um filme!’. Trouxemos ele para São Paulo e durante algumas horas, diante de um gravador, Roberto Carlos contou a sua história, chorou, nós choramos. Somente depois descobri que ele já tinha estado no programa do Jô e dado uma entrevista histórica. Convoquei o experiente produtor Francisco Ramalho, fomos à luta e por sete anos a ideia de fazer esse filme não saiu da minha cabeça.Por que uma demora tão longa? Por alguns motivos. Primeiro, a captação foi extremamente lenta – depois de cinco, seis anos batalhando e de ouvir tantos ‘não’ até pensei que o projeto não fosse sair. Tivemos muitas dificuldades, em dezembro de 2006 para 2007 quase jogamos a toalha, mas aí as coisas começaram a mudar. Em janeiro ganhamos o edital da Petrobrás, em abril o do governo do Estado de São Paulo. Comecei a achar que era um sinal de Deus que o filme deveria sair do papel e ganhar as telas. Por outro lado, confesso que de alguma forma me boicotei um pouco para chegar ao ponto em que realmente entendi a história que eu queria contar. Apesar da angústia da espera, percebi como o tempo é importante para depurar, chegar ao essencial. Como foi o desenvolvimento do roteiro? Foi um longo processo de amadurecimento. Trabalhei com três pessoas: Maurício Arruda, José Roberto Torero e Mariana Veríssimo, roteirista de Cristina quer Casar. Passamos por várias abordagens, tentamos vários caminhos e, ao final, o que prevaleceu foi realmente a motivação do encanto inicial: a relação de Roberto Carlos com a pedagoga francesa e sua formação como contador de histórias. É assim que ele se vê, é assim que ele se define. O roteiro foi depurado nesse sentido: como ele se formou e como usava a fantasia para transformar e conviver com uma realidade muito dura e lidar com frustrações. Desde menino, o exercício da fantasia era essencial para ele aceitar o real. E fizemos questão que esta fantasia tão fértil ocupasse no filme o lugar que teve na vida do menino, com toda sua vitalidade, cores, poesia e humor. Fizemos mais de 20 versões e o que está na tela se aproxima muito da essência que imaginamos ao longo do desenvolvimento do roteiro. Você pode dar exemplo de uma dessas fantasias? Há várias. Por exemplo, no primeiro encontro com Margherit, Roberto conta, de forma superfantasiosa que foi parar na Febem depois de um assalto a um banco orquestrado pela mãe e ao lado dos irmãos. Assumimos esse tom transformando aquela família num ‘Jackson Five’. Vestimos a ‘quadrilha’ com roupas super coloridas, perucas black-power da época e imprimimos à cena um tom farsesco. Um dado bonito é que Roberto usou esse assalto para justificar porque a mãe o deixou na Febem: pela sua forma de narrar, ela era a heroína do grupo, foi ela quem armou o assalto, mas na hora deu azar, a polícia chegou e, por isso, ele foi para a instituição. Agora, com o filme pronto, como você define o ponto essencial da história que você contou?A capacidade de transformação. E essa possibilidade é decorrente de um encontro – do menino de 13 anos da Febem com uma pedagoga francesa, Margherit Duvas, que resolveu não aceitar o diagnóstico de ‘caso irrecuperável’ concedido ao menino pela instituição. No caso de Roberto Carlos, a transformação decorre também da sua capacidade contar histórias – e assim ele conseguiu mudar a própria vida. Ao criar tantas histórias, acabou criando a sua própria história. Eu também sou um apaixonado por histórias e um apaixonado pelo Brasil. A sabedoria do povo brasileiro me encanta, a forma tão especial que certas pessoas têm de contar o maior drama de vida, de transformar a própria história. Não foi por acaso que contei a história de 200 mulheres em Retratos Brasileiros ao longo de cinco anos. Sem dúvida, dirigir esses relatos foi um aprendizado precioso para o filme. Roberto Carlos é interpretado por três não-atores – Marco Antonio Ribeiro (aos seis anos), Paulo Henrique Mendes , (aos treze) e Cleiton dos Santos da Silva, aos 20 anos. Como foi feita essa seleção? Há mais de 100 crianças no filme – e todas, não só os atores principais, foram escolhidos a dedo, ao longo de uma pesquisa de seis meses por comunidades carentes, ONGs, grupos de dança e teatro de Belo Horizonte, sob coordenação de Lais Corrêa. Foram realizados laboratórios com todas as crianças e ela tomou um grande cuidado para não frustrar os não-escolhidos e valorizou sempre que aquele trabalho já era importante. Um dia ela me telefonou e disse: acho que já temos o Roberto de seis anos. Fui a Belo Horizonte, bati o olho no Marco Antonio e não tive dúvida – era ele. A escolha de Paulo Henrique, de 13 anos, também foi conjunta. Não foi uma escolha fácil, tivemos muitas dúvidas, foi um trabalho danado. E como foi trabalhar com esse elenco de não-profissionais? Com Bolinha, que é como chamávamos Marco Antonio, de sete anos, desenvolvemos uma relação tão intensa que beirava o amor e o ódio. Ele é extremamente inteligente, tem muita personalidade, mas com criança não funciona técnica funciona a relação. Conversávamos, passeávamos, brigávamos. Eu falava para a Lais: “Estou tratando ele como trato meu filho”, ou seja, tínhamos uma convivência real, com afeto, com briga, com entendimento. Devido à minha formação em montagem e por não gostar de vídeo assist – prefiro assistir à filmagem –, de certa forma eu agia como o interlocutor do Bolinha: ele geralmente atuava para mim. Foi esse o nosso ‘método’. E com Paulo Henrique? Com Paulo Henrique, por ser mais velho e ter uma grande capacidade de concentração, as coisas fluíram muito bem. Ele realmente entendeu o papel e também teve uma ótima relação com a Maria de Medeiros. Nos dois casos, posso dizer que a relação fora de cena foi responsável por 90% do filme. Tivemos um set muito concentrado – quando as filmagens terminavam, se brincava, mas o clima de trabalho era de concentração total. E as pessoas também foram se conhecendo no decorrer das filmagens. Tentei, na medida do possível, filmar com certa cronologia, para colocar os meninos mais dentro das situações e da evolução dos personagens. As cenas da casa, por exemplo, do contato com Margherit, foram todas filmadas em ordem cronológica, que culminam com a casa inundada. No caso de Paulo Henrique teve uma coincidência muito bonita: no filme, Margherit lê para Roberto Carlos Vinte Mil Léguas Submarinas. Ele se apaixona pela história e ela decide levá-lo para conhecer o mar. Paulo Henrique, como Roberto Carlos, também nunca tinha visto o mar, sua reação gerou muita expectativa e foi emocionante. Com não-atores a intuição vale muito – você tem que trabalhar com o que acontece na hora, com o clima do momento. A corrida para o mar, aliás, é uma clara citação de Os Incompreendidos, de François Truffaut. Sem dúvida – é o meu beijo para Truffaut. Em uma fase da minha vida vi Os Incompreendidos todos os dias. Tenho duas grandes paixões em cinema: o neo-realismo italiano e Truffaut. E como você chegou a Maria de Medeiros? Precisávamos de uma atriz que falasse português e francês e Maria de Medeiros foi o primeiro nome que me veio. Ramalho botou pilha para tentarmos, fizemos um contato, mandei o roteiro e para minha surpresa ela respondeu rapidamente - e mais – empolgada com o projeto. Poderíamos ter buscado uma atriz brasileira para o papel, mas achávamos necessário esse olhar estrangeiro. Maria é apaixonada pelo Brasil, já tinha estado aqui algumas vezes, inclusive com um show em que canta Chico Buarque. Fui para Paris encontrá-la e descobri uma atriz digna da música ‘Se Todos Fossem Iguais a Vocês’. Desde a primeira leitura, ela demonstrou uma noção absoluta do roteiro e da personagem. E ainda se deu ao luxo de perguntar se eu queria que ela lesse com sotaque do Brasil ou de Portugal. Ela é, de fato, muito encantada com o jeito e com a criatividade do brasileiro. Ela vive na França há 15 anos e representa o real entusiasmo do francês com o Brasil. E como se deu o corpo-a-corpo de uma atriz de tantos recursos com não-atores em uma história de dificuldades de relação e de culturas tão diferentes? A dedicação de Maria ao papel, a relação com os meninos, a entrega total à personagem e ao projeto foi uma experiência comovente. Ela não atuou apenas – foi uma incorporação total. Eu diria que ninguém entendeu tanto o roteiro quanto ela, que o humanismo e a delicadeza que ela retrata na composição de Margherit não é só da personagem – é da própria Maria. Ela entendeu tudo tão bem, a nossa relação foi tão simples, que muitas vezes a direção era pelo olho. Ela realmente aderiu à história de Roberto Carlos e tem uma veia clownesca muito comovente. Fiquei muito orgulhoso quando ela disse que nunca trabalhou numa produção em que tudo funcionasse tão bem. Curiosamente, ela é muito parecida com a Denise, as duas se entenderam super bem e vivem fazendo planos de um dia fazer uma espécie de Thelma e Louise. Só estou esperando o que pode vir por aí. O cinema brasileiro já mostrou meninos como Fernando Ramos da Silva (o ator de Pixote, de Hector Babenco, morto pela polícia aos 19 anos), ou Sandro, o seqüestrador do ônibus 174, primeiro em documentário e depois na ficção. Meninos que, como tantos outros, apesar de algumas oportunidades não conseguiram escapar de um final trágico. Qual a diferença entre eles e Roberto Carlos? Também me detive sobre essa questão, consultei muita gente e a maior parte dos textos e dos especialistas bate na mesma tecla: o maior diferencial de Roberto Carlos foi ter tido uma boa formação e um convívio familiar até os seis anos de idade. Alguma coisa acontecia na casa dele que permitiu, mais tarde, a transformação. E essa transformação só foi possível por causa da mola afetiva representada pela Margherit. Um dado muito bonito é que ele foi viver no outro lado do mundo e ao retornar recebeu de Margherit uma coisa fundamental para sua vida: o endereço da mãe, que ele pode reencontrar em outras circunstâncias e até ajudá-la. Como você se aproximou do universo institucional em que Roberto Carlos cresceu? Fizemos uma ampla pesquisa, conversamos com psicólogos, gente que trabalhou na Febem, com outros meninos. Na verdade, todo o discurso de Pérola (Malu Galli) é uma síntese do pensamento oficial da Febem. Muitas pessoas, como ela, de fato quiseram e querem ajudar, mas as condições são extremamente difíceis. Procuramos ser fiéis à realidade da instituição e da época. O Contador de Histórias tem vários planos e camadas – a origem de Roberto Carlos, a instituição, as ruas da cidade, a casa de Margherit. E muitas das ações nesses espaços são ilustradas pelas cenas líricas e poéticas criadas pela imaginação do ‘menino irrecuperável’. Como foi desenvolvido o conceito estético do filme? O conceito estético foi desenvolvido em um forte espírito de equipe: a fotografia de Lauro Escorel, a direção de arte de Valdy Lopes JN, os figurinos de Cássio Brasil, a maquiagem de Simone Batata. Começamos a nos reunir em outubro e começamos a filmar em maio, o que permitiu um grande amadurecimento de idéias. Parte do filme é de época – retrata Belo Horizonte dos anos 70 e 80 - o que impunha uma estética precisa para a cidade. Já as fantasias de Roberto Carlos -sua visão da favela, a chegada à instituição, a forma como via Cabelinho, o chefe da gangue de rua, foram em boa parte inspiradas na obra do Bispo do Rosário, que também criou um mundo próprio a partir o material que coletava e transformava. O hipopótamo de couro azul remendado, por exemplo, é uma referência ao manto do mendigo do Bispo do Rosário. Queríamos mostrar que as fantasias do menino eram realmente o mundo em que vivia. E a equipe trabalhou duro para juntar essas duas partes: a Belo Horizonte da época e o mundo imaginário de Roberto Carlos. Você diria que filmar o percurso de Roberto Carlos representava um fio da navalha, no sentido de não cair, por um lado, na exploração da questão da violência institucional, e por outro, no sentimentalismo que poderia surgir do encontro com a pedagoga francesa? Sem dúvida, e tomei muito cuidado nesses dois aspectos. De forma nenhuma eu quis me deter na questão institucional porque o grande filme sobre o tema já foi feito – Pixote. O Contador de Histórias é mais um filme sobre relações humanas do que um relato sobre uma instituição. Para mim, o maior risco era escorregar na emoção, na pieguice. E me policiei muito nesse sentido a ponto de, durante a filmagem e a montagem, cheguei a pensar em não usar música, reduzida, ao final, ao essencial. André Abujamra, que criou uma trilha maravilhosa, reclamava: ‘Você é muito anticlimax’. Eu respondia: “A trilha só entra se for realmente necessária”. Esse anticlímax foi uma referência de abordagem. Não tenho medo de me emocionar nem de emocionar, mas queria que o filme tivesse o tom exato. Segurar a emoção foi sem dúvida a parte mais difícil. Chorei muito durante as filmagens e brincava com a Denise dizendo que eu nunca tinha chorado tanto na minha vida. Os excluídos sociais têm sido tema de várias produções recentes, algumas bastante polêmicas, como Cidade de Deus, Tropa de Elite, Última Parada 174, Linha de Passe. O Contador de Histórias vai na contramão de filmes que apontam a falta de saída, um fatalismo. O seu filme, ao contrário, acredita na possibilidade de transformação. Admiro esses filmes, mas assumo que O Contador de Histórias caminha na contramão, assim como assumo meu otimismo em relação ao futuro. Me considero uma espécie de Margherit, no sentido de navegar contra o fatalismo. Acredito que há luz no fim do túnel. Se não acreditasse, não veria sentido em fazer filmes. Não acho que O Contador de Histórias mostra apenas uma trajetória fadada ao fracasso com um final feliz. Para mim, esse é apenas um entre muitos outros exemplos bem-sucedidos. É só a gente se mexer, se comprometer, ser mais generoso, aprender. Meu filho está numa escola que tem como lema a formação de cidadãos, não apenas de pessoas. Tenho dois filhos pequenos e Denise e eu queremos formar cidadãos para que possam atuar na sociedade. Esperamos que o filme consiga, em algum nível, exercer o efeito transformador que Roberto Carlos teve a chance de vivenciar. A trajetória de Roberto Carlos também passa por elipses – a relação com a mãe, a permanência dele na França. Como foram tomadas essas decisões? Na história real houve uma ruptura com a mãe, como o filme mostra: ela deixou de visitá-lo e algumas vezes, quando ia, ele tinha fugido, depois ele não voltou mais para casa. Esse afastamento foi real. Quando ele vai para a França achei que a história estava contada. A parte mais bonita da história de Roberto Carlos é que a história continua. Certamente. O Contador de Histórias não narra apenas uma vida transformada pelo afeto, mas também que essa transformação continua, ou seja, Roberto Carlos é um ‘militante’ da pedagogia, tem uma casa onde vive com vários meninos de rua adotados. E assim como sua vida foi transformada, ele também transforma a vida de outros meninos. E você acredita no cinema como possibilidade de transformação? Acredito. A minha vida, sem dúvida, foi mudada pelo cinema. Aliás, continua a mudar. O cinema muda a vida e a arte de sonhar. E quando se lida com histórias de transformações possíveis, o sonho é ainda mais bonito. O Contador de Histórias é seu terceiro longa-metragem, depois de Por trás do Pano e Cristina quer Casar - três filmes muito diferentes. O que eles teriam em comum? O meu prazer de contar histórias – é assim que eu me considero. E contar a história de um contador de histórias como Roberto Carlos Ramos foi absolutamente encantador.
(Fonte: Divulgação Warner Bros.Pictures)

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