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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

LIVRO ,LITERATURA ...



As três palavras do título convivem com Eliana Yunes 24 horas por dia. Doutora em letras e lingüística, pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, professora da PUC-Rio, vice-decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas e co-coordenadora da Cátedra UNESCO de Leitura, Eliana presidiu e revolucionou a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ, criou o Programa Nacional de Incentivo à Leitura - Proler, foi crítica de literatura e teatro para infância e juventude e tem diversos livros publicados no Brasil e no exterior.
Sua fala doce, contundente quando necessário, atrai público das mais variadas origens, idades e formações, seja como contadora de histórias seja para expor suas reflexões, como ela faz nesta entrevista, por e-mail. Uma coisa é certa: suas idéias e experiência encantam, enriquecem e nos estimulam a sermos leitores mais competentes.
A que você atribui o fato de que, em pleno século 21, o conceito de leitura, na maioria dos casos, fique restrito, exclusivamente aos livros e à escrita?
A tradição da escrita é fundadora da cultura ocidental a partir do médio oriente onde emergiram os "povos do livro", para os quais a palavra sagrada, graficamente registrada, tornou-se ícone de poder também temporal. Com isto a escrita passou a signo controlado pela capacidade de decifração, dependente de intérpretes autorizados, o que tornou a leitura um ato cercado de regras e cuidados próprios com a "verdade" dos sentidos. A capacidade de leitura existente anterior à escrita, leitura do mundo, "dos sinais dos tempos", dos acontecimentos, traduzidas em formas orais, ainda que consolidadas pelos costumes, perderam sua força. A imagem teve sua expressão narrativa reduzida a uma cena - ver nos museus o apogeu da pintura nos séculos pós-renascentistas - e somente com a emergência de novos suportes, a criação de novas linguagens - cinema, TV, outras mídias no século passado, - atentou-se para a necessidade de formar leitores para estes modos de narratividade que já estivera presente na oralidade dos povos ágrafos.Depois, o mundo contemporâneo não deu conta de alfabetizar para a construção dos sentidos e com isto tornou o peso da leitura mais atrelado ainda ao livro, tido como suporte de transmissão do conhecimento efetivamente válido e universal. Como poderíamos desmistificar a questão da literatura, da "alta literatura", nas ações de incentivo à leitura de modo que, outros textos, outras linguagens, possam também ser consideradas, utilizadas e incentivadas?
O que precisa ser desmitificado a meu ver não é a literatura popular ou erudita, oral ou clássica - o preconceito vai de um a outro lado. O que urge transformar é o modo de apresentação e de convívio com a linguagem literária: ela é um dos suportes mais fortes da experiência humana acumulada nas práticas culturais de diferentes tradições e tem sido mantida prisioneira de um saber muito específico, acadêmico, que tem seu valor, obviamente, mas não pode/deve impedir que a literatura seja consumida com interesse e disponibilizada para interações múltiplas. Como o cinema e as mídias (digitais ou não) foram ofertadas à recepção sem teorias prévias, o acesso aos públicos perdeu as barreiras de controle. Contudo, estas linguagens se sofisticaram e tem uma leitura cada vez mais exigente de reflexão, debate, associações.Assim, qualquer programa de incentivo à leitura, como prática cultural, demanda de qualquer suporte e de qualquer linguagem uma forte disseminação em exercícios de compartilhamento, com mediadores despojados que saibam provocar o fascínio da interação proposta pelas formas artísticas e culturais. A questão é passar da leitura solitária à leitura solidária do livro à tela. Como você avalia projetos que estimulam a relação da literatura com outros campos de conhecimento?
Muito pobres. Muito. A literatura é uma fonte de saber inesgotável e como disse Roland Barthes em sua aula inaugural, no Collège de France, é a única forma de conhecimento que não poderia desaparecer do currículo escolar, pois, a partir dela, praticamente tudo pode ser estudado no que respeita as ciências humanas e sociais. A literatura tem transversalidade em si mesma. Não vê quem não quer. Em sua opinião, por que o Brasil não consegue reverter o quadro de constante agravamento dos índices relativos aos hábitos e compreensão da leitura?
As razões são múltiplas e eu já analisei isto num ensaio político sobre a promoção da leitura em 1992. Mas falta sobretudo vontade política, união de esforços entre sociedade e governos, programas que levem em conta as realidades locais, envolvam todo tipo de promotores de leitura, consolidem práticas a longo prazo que não sejam descontinuadas pelas vaidade e burrice de ineptos; enfim, o PROLER, montado pela Fundação Biblioteca Nacional entre 1992 e 1996, mostrou que isto era possível e deixou raízes qual tiririca pelo país afora. Preferiram o desmonte a conviver com a História. A leitura não é apenas assunto da escola, nem está atrelada a uma linguagem: ela pertence à vida social e está nos museus, nos centros culturais, na vida urbana como um todo - o letramento é a tradução da cultura em discurso - e deve ser incentivada sob todas as modalidades. Arrumar o pensamento ajuda a entender a "escrita" do mundo e, no sentido inverso, o convívio com as linguagens que grafam o mundo pode dar melhores condições de "uso" do pensamento, de "compreensão" da leitura, fortalecendo (inter) subjetividades em formação.
Como acadêmica e pesquisadora da literatura e das linguagens, que críticas você faz às pesquisas de leitura? As pesquisas de leitura, dentro e fora da academia, dependem de ampla divulgação e debate. O problema está nas interpretações dos dados, nas leituras que se fazem, cruzando ou não as informações que podem revelar distorções nos resultados apresentados. O brasileiro certamente lê ainda que pouco, mas o quê? Não se trata de discutir Paulo Coelho, mas tudo o mais: as revistas, as programações de TV, seus horários de disponibilização de cultura e informação, o preço do cinema, do livro e do teatro, a oferta de eventos e o acesso às bibliotecas, midiatecas, espaços culturais. Hoje o tecido cultural é muito rico e complexo; ninguém é culto ou cultivado por que sabe "só" literatura. O livro na escola é muito mal tratado. Na vida familiar, objeto de luxo ou supérfluo. Os resultados de pesquisa meramente quantitativos escondem realidades que demandariam mudanças profundas na disseminação das práticas de leitura. Você acha que eventos comemorativos (centenário de Grande Sertão, de Machado de Assis etc.) têm um efeito significativo na divulgação e no conhecimento propriamente dito das obras e escritores?
Poderiam ter, sim. Um povo que não rememora sua história e seus patrícios não faz história. O reviver das discussões em torno de grandes obras e autores recoloca em circulação o pensamento e suas contribuições. A questão, de novo, está no como fazê-lo, onde encontrar a audiência para partilhar o tesouro, nas condições da oferta. Os livros do Machado, sobretudo as crônicas e contos, foram relançados em edições de luxo para especialistas ou em brochuras de bolso para populares? O governo investiu nisto com afinco? A mídia, em horários e programas de audiência popular, tratou do tema? Tornou "visível" sua importância e desmitificou a recepção? Os contadores de história foram acionados, apoiados... Ou esta prática "consolida" o analfabetismo como querem alguns desinformados? Exposições, acervos foram abertos? O que se quer com a comemoração: um registro institucional ou a divulgação efetiva da contribuição cultural do autor ou da obra? Como diria Castro Alves, o livro precisa estar na praça e não só nas academias. Você considera a televisão "inimiga" da leitura, como muitos afirmam? Com o avanço das novas mídias, principalmente no mundo virtual, a tendência é a de que o livro, fisicamente falando, desapareça?
São duas perguntas, mas elas, de fato, têm conexão: a TV com certeza redistribuiu o tempo de "lazer" e ampliou o circuito de informação. Mas há um tempo para cada coisa debaixo dos céus, diz o Eclesiastes. Trata-se de como a vida doméstica valoriza e usa os meios de formação e informação. O cinema não morreu com a TV, nem vai morrer com o DVD. A fotografia não matou a pintura, nem a gravura. A leitura interage com todos estes suportes e linguagens e o livro não vai desaparecer, nem frente ao e-book; os pergaminhos e rolos (hoje desenrolamos textos na internet!) passaram a cadernos e brochuras sem que bibliotecas desaparecessem. Não é para temer novas modalidades de comunicação. O que interessa é a narrativa, a literatura, o texto, esteja onde estiver, pois é o pensamento e o sentido, a linguagem, que nos faz humanos.
Como contadora de histórias e fundadora do Grupo Morandubetá, fale um pouco sobre a importância do contador de histórias como promotor de leitura e da aproximação entre a literatura e a oralidade.
A narratividade, função permanente da linguagem, começa com a oralidade. Para que organizemos o pensamento não basta o léxico, é necessária a história. Por isso o contador de histórias, presente em todas as culturas, ancestrais ou não, ajuda a desenhar o mundo e suas versões. Uma oralidade bem resolvida pela capacidade de ouvir e falar a seu tempo traz um extraordinário ganho para a alfabetização, sobretudo quando feita no horizonte das histórias, porque suas estruturas lingüísticas já obedecem à escrita, já que hoje usamos uma oralidade segunda, fruto da sintaxe lógica e não da imagem metafórica, como a primeira. Ignorar que a oralidade não desapareceu é desconhecer a linguagem do rádio, da TV. Estes suportes, mesmo para não letrados, são uma oportunidade de apreender a linguagem que organiza os mundos. A literatura contada é um ganho superior, pois lida com a disciplina da escuta e o estímulo ao imaginário.
Existe uma rede mundial de contadores de histórias. Como o Brasil está inserido nessa rede?
Cada vez mais esta retomada em países tão díspares como a França e a Namíbia, o Brasil e os EUA ou a Índia, a ação de contar mostra que os contadores têm força e ela não se confunde com atraso mas aponta para a efervescência das histórias contadas. De 1989 para cá os grupos de contadores brasileiros se multiplicaram e uma rede nacional para que se conheçam é bem-vinda, passo para uma integração internacional que importa efetivamente como troca de experiências. Hoje esta prática cultural está espalhada seja como terápica, seja como educativa, seja como lazer. Está em hospitais, bibliotecas e restaurantes...
Com a repercussão da atividade de contar histórias nos últimos anos surgiram cursos de formação, grupos e eventos em torno deste tema. Este cenário pode produzir aspectos positivos, mas também alguns equívocos. Você concorda?
Se não houver oportunidade de simpósios, congressos, encontros, a diversidade não poderá ser discutida, as linhas de contação não vão estar expostas e abertas a um colóquio efetivo. Equívocos há em toda parte: o modo como a literatura é apresentada na escola não se tem revelado como totalmente equivocado? O que importa é buscar alternativas que cativem o público ouvinte e leitor para um crescimento afetivo e intelectual. Contar só com o corpo e a voz ou com figurinos e adereços? Não haverá estilos diversos para contar? Qualidade é a palavra-chave!
Que semelhanças, importância e funções você destacaria, fazendo um paralelo entre o contador de histórias urbano e o dito popular, de fora da cidade?
O contador tradicional existe como exigência da condição sociocultural de sua comunidade: ele é a memória revivida, a experiência compartida como forma de agregamento e de identificação. No mundo urbano, apressado e disperso, ruidoso e superficial, a contação emerge como um espaço tempo de escuta e reflexão sobre a beleza da palavra e da narrativa que ficam esquecidas mas não se tornaram supérfluas para a experiência humana. Para não nos tornarmos robôs, autômatos, a palavra é essencial como espaço de construção de sentido, percepção crítica e desalienada de mundo. A arte e a cultura desmassificada resistem em função disto: de que não nos esqueçamos que somos os inventores e não os inventados da vida social e pública. No fundo, os inventores de nós mesmos enquanto sujeitos. A contação de histórias nas grandes cidades, entre gente letrada, talvez tenha a força de convocar para a contemplação perdida e convidar novos amantes para a literatura. Como você escolhe os livros que lê?
De todos os modos possíveis, enquanto fontes: leio suplementos culturais, visito livrarias, converso com alunos e outros professores aqui e no exterior, além de passear por estantes de bibliotecas. Nunca leio só um livro: há os de estudo, enquanto preparo aulas, os de viagem que não saem da bolsa, os de cabeceira que são motivo de confidências e sugestões, os que releio sempre que posso, de pura saudade do encantamento, os que uso para descansar dos mais exigentes, os tomados e folheados em uma prateleira... Invento todos os modos para não perder tempo e oportunidade de ler. Viva Lobato que ensinou de pena a alegria e a dor de conhecer o mundo e a vida pela literatura!


Revista SESC Rio - novembro/2008

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