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segunda-feira, 5 de abril de 2010

Duas grandes damas

Duas grandes damas



Introduzir uma entrevista qualificando Fernanda Montenegro beira o impossível, tantos seriam os adjetivos elogiosos e nunca suficientes. A síntese que ocorre, tampouco inédita, é dizer que ela é uma Atriz, assim, com "A" maiúsculo. Em verdade, até um "muito maiúsculo" seria pouco. Fomos encontrá-la no Sesc Nova Iguaçu preparando-se para um projeto no qual ela apresenta, em Unidades do SESC Rio, um monólogo que tem por base cartas escritas por Simone de Beauvoir, uma das escritoras e pensadoras mais importantes do século 20 cuja obra, assim como sua vida, influenciou gerações em todo o mundo. Além do monólogo, Fernanda se propõe a conversar com os espectadores após a apresentação, demonstrando uma vitalidade que só pode ser explicada por sua paixão pela comunicação com o público aliada a objetivos culturais e de educação e formação de platéias.

Simone de Beauvoir sempre esteve engajada em propostas de mudanças nas estruturas sociais, políticas e humanas. Como é interpretar textos dela?

Pretendo ser mais uma porta-voz do que propriamente interpretá-la. Inclusive, ela deixou declarações de que não gostaria de ser interpretada em cena, no sentido de ser imitada. Eu não sabia desse detalhe, mas acabei intuindo que não me agrada esta coisa da imitação. É muito mais importante ser esta voz do que propriamente começar a imitá-la. Interpretar, interpretar o que? Proponho-me, simplesmente, ser porta-voz dessa mulher que deixou uma obra imensa na segunda parte do século 20 e que até seria inabordável na sua totalidade. A encenação conta com uma palestra e um debate. Quero dizer que nós, no momento, não estamos a serviço de um espetáculo teatral, e sim de um projeto cultural, educacional e artístico, que abrange uma personalidade, no caso a Simone de Beauvoir. Ela é uma representante de um período revolucionário do pós-guerra que mudou a cabeça das mulheres por falar sobre o feminino de uma forma absolutamente nova e ousada.
Simone estava à frente do seu tempo, envolvida com grandes movimentos feministas. O que ela acharia da mulher do século 21?
Não sei, não sei falar por ela, nem ousaria isso, mas eu acho que nós caminhamos para uma assinatura do feminino.

O livro O Segundo Sexo foi um grande choque para a época. Ele pode ser considerado um marco inicial para discussão da situação feminina? Você acha que Simone de Beauvoir escrevia para chocar as pessoas?

Não sou uma profunda estudiosa sobre o assunto, mas sei do impacto que tive quando li, em fins de 40, essa obra. Nunca tinha tido notícias, eu era jovem e fui em busca de algo parecido. Não sou um ser acadêmico, uma cavadora de alfarrábios e de teses, mas eu não tive na minha modesta busca uma obra tão assinada, tão nova, tão organizada como essa sobre o ser feminino. Bem, eu não sei esses meandros da alma humana, ainda mais de uma personalidade complexa como a dela. Eu acho que ela era um ser muito vibrante, verdadeiro e desafiador.

Como foi o seu primeiro contato com a obra de Simone?
Foi com O Segundo Sexo, em 46, 47, quando a guerra terminou. Tinha na época 15 para 16 anos e começaram a vir ressonâncias de uma filosofia que era o existencialismo, que dizia que cada um faria o que quisesse. Inclusive terminou na Chiquita Bacana, existencialista com toda razão, que "só faz o que manda o seu coração", como a letra da música. Tudo isso é para dizer que essa coisa do existencialismo foi representada nas camadas mais populares, que não compreendiam bem onde cantava o galo mas sabiam que havia uma filosofia que só fazia o que mandava o coração.

Se tivesse que escolher uma obra de Beauvoir, qual seria? E o que ela representou?

Escolheria O Segundo Sexo, mesmo. Há também as biografias dela que eu gosto muito, ela é uma romancista maravilhosa. Mas acho que quando ela fala da velhice, do fim do Sartre (seu marido, N.R.), do ajuste de contas da vida, ela se fez muito personagem dela mesma. Pra mim, O Segundo Sexo foi uma coisa avassaladora. Quando eu tinha uns 17 ou 18 anos comecei a vivenciar o feminino. A partir do toque profundo de O Segundo Sexo, as mulheres começaram a racionalizar e se dar o direito de olhar, já que com todos os preconceitos e repressões não poderia se pensar ao contrário. Não era justo, não era direito, mas era o que nos cabia.

Simone de Beauvoir influenciou o seu trabalho?

Não, nunca tomei a Simone como uma padroeira da minha vida. Do ponto de vista comportamental, nunca me propus ao desafio de uma família aberta, de um casamento aberto. Eu acho que o casamento que permanece num nível de cumplicidade é uma coisa, não é uma coisa rara, mas é uma coisa transgressora. Não há nada mais revolucionário hoje do que um par, seja de que sexo for, que encontre uma cumplicidade de vida, tanto num casamento fechado ou aberto. Quando eu falo casamento, eu falo união. Hoje em dia, considero isso uma verdadeira transgressão, que só pode ser vista porque atravessamos 50 anos de atitudes comportamentais absolutamente desafiadoras.

Você concorda que, como pregava o existencialismo, o ser humano cresce de acordo com suas vivências?

O homem é o que deseja ser, você pensa na sua responsabilidade de indivíduo, não pensa? Ele é o resultado da sua vida. Agora a gente está nessa crise, estamos repensando que o homem desejou ser isso. Então, não é de repente, a coisa veio sendo moldada. Foi depois de uma guerra como aquela de 45, que quando acabou não tinha uma casa, um prédio em pé em Berlim, sem falar no resto da Europa. É um horror tão grande, que o homem é o que deseja ser.

Nos livros Uma Morte Suave, de 1964, e Cerimônia do Adeus, de 1981, Simone fala sobre o adeus, a dor, a perda das pessoas queridas. Para você, como é lidar com estes sentimentos?

Estou há muitos anos lidando com o tempo se esvaindo, não só em mim mesma, como no Fernando, em minha irmã, meus pais, meus sogros, meus tios, muitos amigos, todos numa faixa que se convencionou que está na hora de ir. É uma cerimônia do adeus, sem duvida nenhuma. Lá se foram Paulo Autran, Raul Cortez e Guarnieri. Você vira uma espécie de fenômeno quando continua trabalhando aos 80 anos. Ainda fala, ainda anda, ainda consegue ter memória e ainda tem certo espanto dolorosamente circense. Há um fenômeno ali a ser visto, além da sua qualidade, que está lá presente no palco, de ser um excelente ator ou atriz, de saber o seu oficio e de estar ali inteiro. Ainda levanta do chão depressa e guarda todo aquele texto na cabeça. E não dá nenhuma pala que está terrivelmente cansada ou cansado em cena. Nós estamos passando por isso, a minha geração está passando por isso, então é muito difícil, mas é muito próprio falar disso.



O livro A Velhice, de 1970, fala como os idosos são tratados pela sociedade. Como você vê esta questão hoje em dia?



Envelhecer não é fácil. Nem para a própria pessoa, nem para quem assiste o envelhecer da pessoa. Não sou eu quem está dizendo isto, estou repetindo um azulejão da vida contemporânea. Hoje, a gente pode viver mais do que jamais esteve programado na vida para viver. Você com 70 anos ainda está bem, com 80 ainda consegue e a partir de 90 é um fenômeno, mais ou menos não tão raro, não é? O fenômeno mesmo é fazer 100 anos pensando e andando, com lucidez. É difícil. Acho que falta o mundo assumir isso como uma realidade. Ainda não se prestou atenção, não se quer prestar atenção, não interessa prestar atenção em uma sociedade produtiva como é a sociedade contemporânea.



Qual a importância deste trabalho no Ano da França no Brasil?



Às vezes, as pessoas perguntam assim: poxa, o que o Brasil tem a ver com Simone, com Sartre? A gente precisava fazer uma coisa brasileira, a gente precisava fazer, sei lá, uma coisa mais ligada a nós, tem sempre essa conversa. Mas acontece que, às vezes, a gente tem ambições não tão regionais, não tão municipais ou não tão federais. Tem ambições de conhecimento, de fome de outras culturas, de outros luminares que, por sua força, transferem uma emoção, uma arte ou um pensamento que não faz parte de nenhum lugar, faz parte da humanidade. Não especificamente de um lugar, não é? Então, é com este espírito que estou me aproximando da nossa Simone de Beauvoir, a Castor. Foi muito interessante, porque calhou de acontecer no ano França-Brasil. Não pensamos nisso a priori, há dois anos. E como também temos uma influencia tão grande da cultura americana em cima de nós, tão absolutamente americana, ainda mais dentro da própria arte, é interessante variar um pouco esse pensamento via Europa.



Como foi feita a seleção dos textos da Simone de Beauvoir para este projeto?



São cartas. Na verdade é um texto somado das cartas que ela escreveu, trocou com Sartre, além de pequenas referências da ligação dela com o escritor Nelson Algren, um pretendente. Muitas ações que foram detonadas por Sartre não entram na história. Não acho que seja um espetáculo, é uma encenação de um monólogo. As cartas começaram a ser escritas quando ele foi convocado para guerra. Teve início, então, a troca de correspondências. Essa geração escrevia muito, era completamente epistolar. Eu não sei como eles tinham tempo para outras coisas, todos se escreviam muito.



Neste projeto, sua idéia é inspirar as pessoas a criarem mais, mesmo se tratando de uma platéia formada não necessariamente por artistas?



Nós temos que fazer pensar um pouco. Não é massacrar academicamente uma platéia, chatear uma platéia, mas eu acho que tem que haver lugar para um teatro que traga uma conotação de revisão existencial, de revisão dos propósitos do indivíduo. A coisa paroquial do teatro também é fundamental. Se você falar para uma platéia que veio ver algo, que ali vai encontrar mais do que simplesmente as cócegas debaixo do braço, é interessante. Isso não quer dizer que as cócegas debaixo do braço também não tenham sua função. Mas isso só também é triste. O bom é a diversificação. Eu pensei em desdobrar, neste projeto, a presença de um tema, não somente na encenação, mas que se ocupe o espaço do teatro para uma palestra, para debate, para cinema, se for possível, para uma pequena exposição.



Qual a sua expectativa para a apreciação do público?



Fazer um trabalho desses é exaustivo. Estamos caminhando para dois anos de esperar o momento, de pesquisa, do que vai se fazer, do direito de usar as cartas que levam muito tempo para dar um ok. Quando atrasa uma coisa, perde-se aquele teatro, muda-se de rumo. Aí vai à procura de outra saída. Penso, honestamente, buscar algo que tenha calor, que tenha luz. Toda platéia tem capacidade de perceber qualquer espetáculo, se ela vier para isso. O texto pode ser complexo, mas se existir uma estrutura certa, se nao baratear o caminho, o público aceita.



Grandes e pequenos personagens, vocâ abraça todos da mesma forma. O que a move?



Eu acho que é o artesanato, sabe? É o fazer, é o oficio, é o prazer do jogo. É o que eu sei como meio de comunicação humana. Todo personagem é interesante. O dever da gente é, na medida em que se aceita aquele tipo de perfil, buscar o que ele tem. É um desafio quando ele é muito grande, muito farto, pois te ajuda. Quando nao tem nada para oferecer, ele desafia o seu imaginário. Não sou uma pessoa preconceituosa com relação a gênero. Eu encaro como um trabalho e gosto de diversificar, também tem isso. Não sou especializada só em jogar bolinha para o ar. No circo eu gostaria de atuar em diversas modalidades: no trapézio, a moça do cavalo e até aquela que limpa a bosta do elefante, não tem problema.







Revista SESC Rio - março/2009





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