Por Lucianno Maza (SP)
Uma das jovens atrizes de maior destaque no cenário teatral de São Paulo na última década, Juliana Galdino - cujo talento foi lapidado pelo encenador Antunes Filho –, estreia oficialmente como diretora à frente de sua companhia, a Club Noir, em “H.A.M.L.E.T.”: uma releitura de William Shakespeare criada por Roberto Alvim - que habitualmente dirige o grupo -, voltando à sua produção como dramaturgo (seu último texto foi o belo monólogo “Anátema” - estrelado pela diretora em 2006). Na clássica tragédia, escrita, possivelmente, no final século XVI, o transtornado príncipe Hamlet, do reino da Dinamarca, decide vingar seu pai - cuja vida e coroa foram usurpadas por seu tio - levando à loucura e morte o assassino e sua própria mãe, desposada pelo algoz do marido morto. Em sua obra-prima, o bardo inglês teceu uma trama poética e vigorosa sobre o Homem e suas profundezas, usando a reflexão da sede pelo poder e vingança, como platô, para falar, também, de sentimentos e conceitos morais, como o amor, a corrupção, o incesto e, em especial, a loucura - e como ela pode ser manipulada, ardilosamente, como desabono de uma raiva e justiça legítima. Saindo do palácio, a versão contemporânea em questão, transpõe a saga para o quarto de um hospital psiquiátrico. É interessante perceber como tal trânsito inverte o jogo entre os personagens: se antes, Hamlet e sua insanidade eram um ponto estranho e incômodo dentro de um ambiente opressor, estabelecido por seus inimigos dentro da casa real, agora, são estas figuras que têm de entranhar-se no desconfortável universo psicótico do protagonista, os tido como normais estão no terreno do louco, e não mais o contrário. Quimicamente alterada, a visão a qual acompanhamos, é a do personagem principal, imerso agora numa experiência lisérgica no espaço ambulatorial onde se encontra, com seus familiares e amigos transformados em médicos, pacientes e delírios. O texto tem passagens primorosas - como a descrição de um suicídio perfeito, ao final - e funciona objetivamente como um contundente comentário crítico aos conteúdos propostos pela obra original, expondo novas e pertinentes visões e questionamentos a respeito da história e seus personagens, de forma radical e, por vezes, romanticamente idealizada. Tal dramaturgia é o combustível ideal para uma montagem carregada de simbologia e que condensa ainda mais o texto, delimitando a ação ao primordial. A encenação da diretora surge sintonizada com a estética e linguagem de seu grupo, mas traz uma certa suavidade formal, se comparada a trabalhos anteriores, e aproveita muito bem o espaço - belamente iluminado -, criando imagens que transcendem a beleza plástica e se tornam signos que ganham sentidos dentro da obra, ou a resignificam, introduzindo um novo contexto para as cenas. A direção é marcada por esse apuro imagético, e também pelo humor negro e misterioso, e têm pontos altos na comunhão com a dramaturgia, em momentos como a não-exibição do assassinato em filme, o diálogo de Hamlet com a cabeça decepada de Ofélia, seu enfrentamento edipiano com a mãe, o monólogo final de Horácio, e o inusitado e irreverente jogo de palavras proposto pelo quarteto antropomórfico de atores. O elenco, encabeçado por Renato Forner - que parece ainda estar se apropriando da linguagem adotada pela companhia -, tem como destaques as atrizes Anapaula Csernik e Janaína Afhonso, e o ator Bruno Ribeiro, e é completado por Everson Romito, Felipe Rocha, Kenan Bernardes, Marcelo Barranco, Marcelo Ribeiro e Ricardo Grasson, conjunto que executa bem a proposta do espetáculo. Intelectualmente rico, “H.A.M.L.E.T.”, é um espetáculo revelador.
Serviço: Club Noir (SP)
Sexta e sábado 21h e domingo 20h
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