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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O dia em que conheci Drummond

Bom dia, Amigos.
Por inciativa de um livreiro apaixonado , hoje, comemora-se o DIA D, dia dedicado a Carlos Drummond de Andrade, Poetíssimo.
Para celebrar a data, trago com a epígrafe do dia, uma história vivida , usufruída.


O dia em que conheci Drummond
 
Há muitos anos, quando eu era uma jovem universitária, aconteceu uma sequência de fatos inesquecível. Vou contar.
Eu era, já então, apaixonadíssima pela obra de João Guimarães Rosa e pelos versos de Drummond. Aliás, pelo Drummond poeta, ser humano, mineiro. Pelo ser quase mítico, escorregadio. De riso contido, olhar de vislumbre, palavra precisa.
Na época, a obra do Rosa encontrava-se esgotada. Nunca gostei de ler livro de biblioteca. Gosto de livro meu, que possa marcar, escrever, ter para sempre à mão e ao pé do coração.
Havia, naqueles anos, um sebo famoso no Rio. O Sebo da Livraria São José, na rua de mesmo nome. Lamentavelmente, virou, em anos recentes,  loja de uma destas cadeias de comida rápida. Infame crime. Deixou de alimentar almas e sonhos e não alimenta outras fomes.
Pois bem. Depois de longa peregrinação por todos os sebos do centro do Rio, resolvi aceitar a sugestão do livreiro e encomendei os volumes da obra de Rosa. Espera ansiosa por Grande Sertão: Veredas, Tutaméia, e todos os outros. Já havia lido o que se podia encontrar: Primeiras Histórias e Sagarana.
Eis que um dia, recebo a ligação: seus livros estão à sua espera, senhorita. Achei tão bonitinho o senhorita. Me fazia quase personagem.
Lá fui eu, toda faceira, buscar meus livrinhos. Sebos me atraem profundamente. Os livros parecem sussurrar segredos. Os que encomendara estavam já separados. Entretanto, fiquei, como dizia minha avó, ciscando pelos corredores penumbrosos em busca não sabia de quê. Encontrei, então, Menino Antigo, que, claro, estava esgotado. Não poderia resistir. Peguei-o da estante e dispus-me a levá-lo comigo.
Foi nesta altura que percebi um cavalheiro trajado de terno escuro; alto, quase solene. Óculos sobre o olhar sereno. Olhava-me entre divertido e intrigado. Sorriu. Sorri. Encabulados sorrisos.
Era preciso ir. Paguei os livros já embrulhados. E sai para o sol que inundava a tarde. Logo notei que o solene cavalheiro seguia-me. Fiquei intrigada. Desde os corredores do falecido sebo, tinha a incômoda sensação de conhecer o discreto cavalheiro, sem que, no entanto, atentasse com quem fosse. Amigo da família? Avô ou tio de amiga? Antigo professor? Nada. Apenas aquela indecifrável coceira na memória.
Eu ia em direção ao  Largo da Carioca em sua versão antiga, onde tomaria o ônibus que me levaria até Santa Tereza, onde trabalhava. Em uma certa esquina, esperando o momento de atravessar, nem me espantei quando o cavalheiro se dirigindo a mim disse:  – Não pude deixar de notar que a senhorita comprou livros de Rosa e de Drummond. Há de concordar ser algo inusitado em pessoa tão jovem.
Eu, no alto de meus 18 anos, cheia de fervor e paixão retruquei:
- Isto é porque o senhor não me conhece. Sou apaixonada pelos dois. Não posso viver sem ter lido a obra todinha do Rosa e Drummond; bom, Drummond é simplesmente meu poeta favorito. São meus dois maiores amores. E como estudo Literatura na Universidade, acho também, por isso , muito natural, lê-los.
Percebi um sorrisinho travesso em sua face.
Fomos conversando animados enquanto eu escarafunchava minha memória em busca do nome do dono de tão boa conversa, fina cultura e delicada presença. Mas, nada.
Falamos de poesia e juventude. O misterioso cavalheiro disse que não acreditava que eu conhecesse de forma razoável a obra de Rosa. Atrevida, cansei-o com citações de contos lidos, análises, reverências. Cega como pavão, nem percebi o brilho divertido em seu olhar e muito menos o tom de intimidade com o qual falava de Rosa. Não era esta intimidade de leitor. Era algo além. Mas, quem disse que eu enxergava palmo além de meu nariz?
Divertido e desafiador disse estar convencido,mas que ainda duvidava de que lesse Drummond. Rindo, recitei-lhe versos gravados na alma: José, Mãos Dadas, A Flor e a Náusea, Memória ,Poema de Sete Faces, Amar, Entre o Ser e as Coisas. Um sarau em plena tarde. Seu olhar cobria-me de ternura e algo que não decifrei na hora, ocupadíssima em exibir-me.
Chegamos, por fim , ao Largo da Carioca. Despedimo-nos.
Logo que sentei no ônibus, abri o pacote ansiosa para ler meus livrinhos. O primeiro foi Menino Antigo. Lá, dentro do livro, por trás de seus óculos, fitava-me o Poeta. Parecia troçar de mim. Era ele o misterioso cavalheiro. Como pude ser tão cega, tola? Como não vi logo que estava diante de meu Mestre?
Fiquei feito boba, recriminando-me.
Depois consolei-me. As lendas sobre a timidez e caráter reservado do Drummond corriam pela cidade. Quem sabe, não falaria comigo se notasse ter sido reconhecido. Muito menos eu teria tido coragem e atrevimento para falar com ele. Menos ainda para recitar-lhe os amados versos.
Passei a buscar,a  tocaiar o poeta nos lugares que todos sabiam frequentados por ele. No sebo. No terminam Menezes Cortes onde ele costumava tomar sorvete batido com leite e pegar o frescão. Nada. Nem sinal do Mito.
Até que um dia, vi-o, pela vitrine de confeitaria, tomando chá. Afivelei minha cara mais cínica e entrei. Olhava em busca de um lugar para sentar-me, com a naturalidade de uma atriz. De repente, nossos olhares se cruzaram. Breve sorriso. Um aceno. Meu coração batia ensandecido. Aproximei-me da mesa. Cumprimentei-o. Ele levando-se, apertou-me a mão. Senti-me velha conhecida. Convidou-me a sentar. Tomamos chá e comemos delícias. Eu decidi não dizer nada. Era como se apenas tivéssemos interrompido a conversa do outro dia. Sabia que não podia pedir-lhe autógrafo, dedicatória, opinião.
Foi-se. Fui. Fomos. Tácitos.
Disse quase indo que todas as semanas tomava chá ali, em determinado dia. Gostaria de ver-me, ouvir-me vez por outra. Não podia acreditar em tamanha sorte. Todas as Musas e o próprio Apolo pareciam tramar a meu favor.
E assim foi que por muito tempo, enquanto morei na Maravilhosa Cidade, tomei vez por outra chá com um  Mito, um Mestre, um Amor. Poeta maior. Digno, generoso ser humano, capaz de ter paciência com a minha intolerável ignorância de 18, 19, 20 e outros muitos anos. Seu sorriso benevolente e sua doçura marcaram-me além do dizível. Mais, quem sabe, que sua própria poesia.
'Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão."
Ana Lúcia de Mattos Santa Isabel

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