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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Contadores de histórias - Guardiões das culturas populares


Contadores de histórias - Guardiões das culturas populares
Texto de Benita Prieto - Brasil. Idealizadora e produtora do Simpósio Internacional de Contadores de história

Para Fernando Lébeis, meu mestre na arte de contar, que me despertou o amor pela cultura popular e ensinou-me a olhar com carinho as histórias que o nosso povo conta. Falar em literatura oral no Brasil é falar de um país que muitas pessoas supõem que não mais existe. O processo de desenvolvimento fez com que várias manifestações culturais deixassem de ser entendidas como próprias do povo. Vejamos o caso do Carnaval, possivelmente a maior festa popular do mundo, nela os foliões entregam-se aos seus desejos genuínos e primitivos sem saber que refazem, talvez atavicamente, o mesmo que fizeram todas as gerações passadas. Especificamente com relação à literatura oral, andamos nos afastando desse rico acervo por acreditar que tudo são “causos”, lendas, superstições. Mas se temos a oportunidade de sentar ao redor de uma fogueira, toda essa ancestralidade nos penetra e logo podemos ter vontade de contar as histórias ouvidas dos nossos avós. Para completar, o quadro atual de todas as mídias no Brasil é confuso no que diz respeito a esse assunto. Muitas vezes a literatura oral é usada e não é referenciada como fonte. Claro que existe a dinâmica do folclore, mas como patrimônio que é da humanidade não pode ser aprisionado e usado em favor próprio. Um exemplo são os programas infantis, que tem utilizado os contos populares e muitas vezes também os autorais, sem dizer de onde foram retirados ou por quem eram contados. Ainda há interferências com questionáveis conselhos em outros aspectos das culturas populares. Essa é uma maneira bastante leviana de tratar-se algo que não nos pertence individualmente. Já tivemos bons exemplos de circulação da literatura oral como mostrava o programa Som Brasil de Rolando Boldrim, nas décadas 70 e 80, na TV Globo e o Canta Conto, de Bia Bedran, na TV Educativa do Rio de Janeiro. Também existiram ótimos programas de rádio que faziam muito sucesso entre as crianças como o Ta na hora de dormir, de Márcio Trigo, recheado de histórias de Andersen, Irmãos Grimm, contos populares, lendas indígenas. Nesse momento há uma lacuna na programação cultural das mídias a ser preenchida. E que quando bem executada dá belos frutos. É só lembrar, por exemplo, de algumas matérias feitas para o Fantástico, da TV Globo, aonde já vimos muitas dessas manifestações sendo exibidas, como a cidade dos Lobisomens, a associação de criadores de Sacis, os pescadores que acreditam terem estado com entidades do mar. Quando essas matérias acontecem podem promover boas conversas nas indústrias, nos bancos, nas escolas, nas casas, nos bares. A literatura oral está conectada com o passado de gerações e famílias. Nosso país tem uma miscigenação enorme e que varia de acordo com a região brasileira, pois somos a mistura de povos europeus, africanos, indígenas e asiáticos. Esse caldeirão de culturas possibilita a existência de muitas comunidades narrativas. Se tomarmos como exemplo uma favela do Rio de Janeiro sabemos que ali podemos ter histórias de várias partes do Brasil, devido à migração interna na busca de melhores condições de vida. Por isso, é fundamental fomentar nos jovens o desejo de preservar as histórias “particulares” da comunidade narrativa a que pertencem. Eles devem ser estimulados para que tragam as histórias que conhecem, para que tenham orgulho delas e passem a contá-las em todos os espaços possíveis. E aí podemos incluir a tv, o rádio, a internet, o cinema. Os jovens são sem dúvida o nosso maior investimento para a continuidade desse elo, neles devemos apostar. Mas é preciso uma certa técnica para fazer a recolha dos contos. É importante não interferir na hora da narração, coletar o conto no local onde normalmente é contato e não acreditar na memória ou na própria escrita, gravando tudo para a futura transcrição. Existem muitos livros que mostram textos recolhidos onde em primeiro lugar está o texto tal qual foi dito pelo contador, e a seguir vêm uma tradução ou versão feita pelo pesquisador. Essa é uma boa maneira de registro. Claro que o contador popular pode sofrer interferência da platéia, seguindo outros rumos na hora da narração, mas sempre haverá uma estrutura mínima respeitada por ele. Essa estrutura, juntamente com a dicção que foi preservada, será a nossa fonte de estudo e a nossa matriz. Pena que a escola normalmente é muito preconceituosa com as manifestações populares. Esquecendo a multiplicidade regional, os saberes do povo, o conhecimento tácito. Podemos incluir nesse pensamento desde a escola elementar até a universidade. A literatura oral não é valorizada ou então é reduzida ao mais simples registro possível. Imaginem se podemos dizer que o lobisomem possa representar, num país continental como o Brasil, todos os personagens do folclore que são peludos e comem gente. É uma redução apenas para dizer que o folclore está sendo ensinado na escola e ainda num determinado mês do ano, o de agosto. Como se nos outros dias não pudéssemos usar os ensinamentos recebidos das gerações que nos precederam. O problema é um total desconhecimento da importância do tema. É bom lembrar que existe hoje um diálogo e um trânsito permanente entre a literatura oral e a literatura escrita. Os grandes escritores do mundo bebem de suas fontes culturais e históricas, constroem releituras, alargam visões. E no Brasil tivemos alguns autores/pesquisadores que contribuíram de forma decisiva nesse diálogo. Temos várias gerações criadas com a literatura mágica e essencialmente brasileira de Monteiro Lobato, o inventor do Sítio do Picapau Amarelo. Temos também Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo, cada qual a seu jeito, valorizando os saberes do povo para construir no nosso imaginário a força da narrativa. O ideal é nunca fechar as portas do coração, nunca esquecer a “aldeia” de onde viemos. Já que não dá para fazer uma divisão entre literatura oral e literatura escrita, os contadores de histórias urbanos podem aproximar esses dois mundos, colocando a literatura escrita ao redor de uma fogueira mítica e valorizando a literatura oral dando-lhe status de saber. Tudo o que foi descrito anteriormente só vem reforçar a importância do trabalho dos contadores de histórias para a preservação das culturas populares. Mas como não há no Brasil uma formação específica na arte de contar histórias o interessado tem que ser autodidata. Precisa ler muito, fazer muitas oficinas, ver muitos contadores, descobrir o seu estilo de contar, o gênero de história que lhe dá prazer. Evitar copiar o repertório que vê, buscar novas fontes, trazer outros olhares. E principalmente usar os seus próprios recursos. Cada contador tem suas sutilezas na hora de narrar. Por isso a mesma história pode ser contada de várias maneiras e todas serão belas desde que haja a verdade de quem conta. Somos contadores na essência, estamos durante toda a vida construindo histórias. A narrativa faz parte do dia a dia. Um olhar para dentro pode ser o estopim dessa arte em cada um de nós. O mais importante é entender que a literatura, seja oral ou escrita, é para ser brincada, dividida, compartilhada. Sejamos, portanto, solidários na vida e nos contos. De mãos dadas vamos atravessar o caminho onde nossas histórias se cruzam, se completam, se constroem.

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