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segunda-feira, 22 de março de 2010

GRANDE FORÇA DA ADAPTAÇÃO

MEMORIA DA CANA


Nelson Rodrigues é, até hoje, o mais célebre dramaturgo brasileiro, responsável por uma obra cuja identidade é facilmente perceptível, seja por sua escrita de personalidade, ou por conta de temáticas recorrentes em suas histórias, geralmente carregadas de sentido trágico, e tabus, como o incesto, tendo o seio da hipócrita família brasileira, dos anos 40 e 50, como universo. Escrita em 1945 (e encenada somente depois de mais de 20 anos, por conta da censura), “Album de Família” faz parte das chamadas peças míticas do autor, e apresenta uma família, toda ela, acometida pelo desejo proibido e incestuoso, com personagens arquetípicos que parecem saídos de um estudo psicanalítico de Freud. Isolados numa fazenda, onde estão afastados da modernidade urbana de então, e ainda submetidos a um esquema de patriarcado, os integrantes, do desagregado núcleo, são: dona Senhorinha, a mãe amoral, que tem relações sexuais com um de seus filhos, o louco Nonô, e provoca paixão em outro, Edmundo, casado com Heloísa; Rute, sua feia irmã, solteirona, que ama e devota o cunhado, com quem teve uma única noite de sexo, graças ao estado alcoólico dele; Jonas, o cruel e agressivo pai, que estupra jovens para saciar carnalmente o desejo que nutre pela filha, Glorinha, esta que, ao retornar para casa, expulsa do internato - por conta de uma relação homossexual -, desencadeia a sequência de tragédias, a começar pela própria, pelas mãos do irmão primogênito, o seminarista Guilherme, que se castra como forma de protegê-la do seu querer sexual. Apesar do discurso realista, o texto apresenta uma situação exagerada, que beira o absurdo, onde nenhum personagem é impune, e é em seu caráter representativo, simbólico, que reside a sua maior qualidade, não é a toa que o autor evoca o caráter religioso, e o confronto entre o sagrado (a família, a imagem, a igreja) e o profano (o sexo, o animalesco, a violência). Tomando este texto, o adaptador e diretor Newton Moreno transpôs a história para Pernambuco, sua terra natal, e também dos antepassados do autor (que mudou ainda criança para o Rio de Janeiro), e ainda do antropólogo Gilberto Freyre - cuja obra influenciou o espetáculo -, localizando-o numa espécie de casa-grande de um engenho de açúcar, e o batizando com o nome “Memória da Cana”. A história, talvez por já se passar num microcosmo social exilado, viajou muito bem para o interior nordestino, se comunicando com sua iconografia. Apenas Nonô parece ter perdido um tanto da presença que tinha no original, sendo introduzido um pouco mais tarde na atual versão. Sem dúvida, é na encenação que reside o grande encantamento que o espetáculo exerce, excelente dramaturgo, o diretor sabe conduzir a história, e materializá-la de forma intensa, e poética, extraindo das situações imagens comoventes, e uma ambientação de forte beleza. A direção é segura e criativa, desde o prólogo, com o público em quartos com um dos membros da família, e atinge rendimento superior na segunda parte, após a troca de cenário, cabendo destacar, ainda, o recurso de utilizar um mesmo ator para representar dois personagens que, de alguma forma, são complementares. Espetáculo do grupo Os Fofos Encenam, chama atenção o entendimento dos atores da proposta, tanto do texto original, como do novo tempo e espaço no qual ele foi inserido na montagem. Paulo Pontes e Viviane Madureira apresentam os melhores trabalhos do elenco, com sensibilidade e certa contenção, sendo responsáveis pela cena mais intressante no que diz respeito a intrpretação, a do encontro dos irmãos Guilherme e Glorinha. Já Luciana Lyra, como Senhorinha, cresce bastante na segunda metade da peça, surpreendendo com seu desempenho nas cenas finais. Completam o elenco Marcelo Andrade (Jonas), Kátia Daher (Rute e Heloísa), e Carlos Ataíde (Edmundo e Nonô). “Memória da Cana” é um espetáculo forte, e interessante.



Serviço: Espaço dos Fofos
Sábado 21h, domingo 19h e segunda 20h



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