Minha lista de blogs

segunda-feira, 22 de março de 2010

RESTOS


Muito se fala do abandono da platéia, o público brasileiro tem se distanciado do teatro cada vez mais nas últimas duas décadas em conseqüência de diferentes razões, algumas concretas (como o surgimento e sedimentação de outras opções de entretenimento e o alto custo dos ingressos) e outras abstratas como o desinteresse no teatro, talvez a questão mais séria e sobre a qual ainda não nos debruçamos com a devida atenção. A classe média, de onde sempre proveio a maior fatia do público de teatro, deixou de ir às salas de espetáculo como hábito natural e passou a encará-lo como um passeio, ou um “programa especial”, no pior sentido que este termo possa representar, como algo distante, que acontece pontualmente e tem pouca influência em suas vidas. Em geral os espetáculos escolhidos para se tornarem o tal programa teatral da semana (na melhor hipótese) ou do ano (na mais pessimista) são produções comerciais encabeçadas por grandes nomes da nossa televisão, como Antônio Fagundes, um dos atores mais famosos de nosso país. A expectativa de grande parte do público que lota seu espetáculo é por ver ao vivo o galã e, de forma parcial, se entreter por uma hora e vinte minutos antes do jantar. O ator, também produtor da montagem, tem consciência de seu alcance e do fascínio que exerce, e aproveita-se de sua condição privilegiada para surpreender o público apresentando não um entretenimento fácil, mas uma obra artística de altíssimo nível e grande teor provocativo. O artista cumpre a função de lançar uma reflexão diferente ao público, e não se limita às convenções esperadas. O texto escolhido foi “Wrecks” de Neil LaBute, aqui livremente traduzido como “Restos”. O autor, também cineasta (“Na Companhia de Homens” é seu primeiro e mais representativo filme), é um dos principais nomes da dramaturgia contemporânea americana, anglófilo, sua obra remete ao movimento In-Yer-Face do teatro britânico dos anos 90, com histórias bastante perturbadoras e diálogos afiados que despem o lado mais sombrio da natureza humana. O texto em questão, um monólogo, mostra um inconformado viúvo de meia idade que no velório de sua companheira desvela a história de seu amor. Delicadamente subversivo e instigante, o autor acerta ao se estender mais na narrativa poética do sentimento do personagem e localizar a inesperada revelação no fim da trajetória, o que muda o sentido trágico, mas assegura a empatia do público pela controversa figura central, eliminando o maniqueísmo que poderia atrapalhar a reflexão que ele nos provoca acerca das rupturas dos limites do amor e do desejo. Traduzido com fluência por Clarisse Abujamra o texto recebeu direção de Márcio Aurélio que concebeu uma encenação extremamente limpa e elegante, que ao mesmo tempo em que mantém total sintonia com o texto o transgride em imagens de impacto e beleza com o auxílio de uma cenografia moderna que se revela ao longo da peça. O ator apresenta um ótimo trabalho com emocionante entrega ao texto e total domínio técnico de voz e movimento, preenchendo o palco com sua forte presença. Se ele entra em cena já com o público ganho, poderia facilmente perdê-lo pelo choque que sua escolha em encenar este texto causaria na classe média pagante, isso não ocorre enfim, menos pela parcialidade do público e mais pelo real envolvimento que o ator, com seu cuidadoso desempenho, atinge. “Restos” é um belo texto exemplarmente estrelado por um profissional que não renega seu lugar de destaque na sociedade mas, utilizando-se dele, leva ao público médio um teatro realmente provocador.




Serviço: Teatro FAAP
Quinta e sexta 21h, sábado 20h e domingo 18h

Nenhum comentário: